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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O mar


Ouve! O mar, escarpando as rochas, na agonia
Do sol, parece ter na voz humana acento
De dor! Reza, talvez. Vai recolher-se. O dia
Se ajoelha e a tarde, em sonho, abraça o firmamento

Como nós, pode ser que a tristeza e a alegria
O mar sinta também: precisa, em movimento,
Trazer um coração... Quem sabe o que irradia,
No íntimo, em doce e azul recolhimento.

Escuta! Uma onda vem beijar-te os pés. Não a de
Calma os seios rasgar sobre os basaltos. Quero-las
As ondas todas são. Ouve-lhe a voz. Piedade!

O mar leva-me a crer que tem paixões mortais
Em que rolam, brilhando, as lágrimas das pérolas
E palpita, fervendo, o sangue dos corais...


Maranhão Sobrinho
Do livro Vitórias Régias

Rubro

Púrpura cor de Sírios! Cor da guerra,
das flâmulas sangrentas da batalha!
cor que enlouquece, que embriaga e aterra,
derramada na arena ou na muralha!


Cor de gritos! Clarim das cores! Serra
do Emocional que o espírito retalha!
Febéia cor da volúpia sobre a terra
derramada, que grita e que farfalha!


Cor do Sol-Posto! Cor do Inferno! Cor
dos punhais e das lanças, difundida
por toda a terra, como a Luz e o Amor...


...Régia cor dos seus lábios escarlates!
Suprema cor da Morte e cor da Vida
dás-me a visão de auroras e combates...

Maranhão Sobrinho

O GATO



Enquanto mamãe Chiquinha
no quarto o caçula embala,
com os contos da Carochinha,
os dois namoram na sala.

-Tu não te zangas Corinha,
se eu te beijar? Anda…fala!
-Não sei, não, diz-lhe a priminha
e um beijo bem longo estala.

A mãe, que, ao menor ruído,
se assusta, pergunta: -Cora,
que foi isto? e atenta o ouvido.

Diz-lhe a filha que a escutou:
-Não foi nada, não, senhora:
foi o gato que espirrou!

Maranhão Sobrinho

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A PONTE DE MIRABEAU



Sob a ponte Mirabeau desliza o Sena
E os nossos amores
É bom lembrar, vale a pena,
Que a alegria sucede aos dissabores

A noite vem passo a passo
Os dias se vão eu não passo

As mãos nas mãos estamos face a face
Enquanto passa
Sob a ponte de nossos braços
A onda lenta de um eterno cansaço

A noite vem passo a passo
Os dias se vão eu não passo

O amor se vai como esta água barrenta
O amor se vai
Como a vida é lenta
E como a esperança é violenta

A noite vem passo a passo
Os dias se vão eu não passo

Passam-se os dias passam-se as semanas
Nada do que passou
volta de novo à cena
Sob a ponte Mirabeau desliza o Sena

A noite vem passo a passo
Os dias se vão eu não passo


Guillaume Apollinaire
(Tradução: Ferreira Gullar)

Vendo as Jovens

Aurelio Arteta (Espana)

Madruga. E água vos desnuda alegres
por dentro dos espelhos. Repentinas
partis. E a superfície exerce
profundidade. E salpicais os dias

de movimento, súbito nem leve,
mas pura luz ao longo da retina.
E enquanto sobem músculos ou descem,
visível ave rítmica respira,

regressa, vai, ou cega. Tão verdade
que um fundo de água a apaga. E as esquinas
são anúncios antigos de cidade

pensando-se na noite, que dominas,
real como quem tem só idade
e, de repente, o azul é meio dia.

Fernando Echevarría

VINHAM ROSAS NA BRUMA FLORESCIDA

The New Monet, Rose Hips and Healing Plants

Vinham rosas na bruma florescida
rodear no teu nome a sua ausência.
E a si se coroavam, e tingiam
a apenas sombra de sua transparência.

Coroavam-se a si. Ou no teu nome
a mágoa que vestiam madrugava

até que a bruma dissipasse o bosque
e ambos surgissem só lugar de mágoa.

Mágoa não de antes ou de depois. Presente
sempre actual de cada bruma ou rosa,
relativos ou não no espelho ausente.

E ausente só porque, se não repousa,
é nome rodopio que, na mente,
embruma a brisa em que se aviva a rosa.


 Fernando Echevarría

VÉNUS

Cabanel, The Birth of Venus

Sublevava-se no verbo uma brancura
onde sucumbem subtis
trampolins de alvaiade com que a espuma
se exalta na penumbra e nos quadris.

E impugna o púbis. O assusta quase
no aperto da sua timidez
batida pelo mar feliz da frase
que se ergue do triunfo do que fez

com Vénus firme a resistir ao meio
da onda aonde se debate a trança.
E onde o desafio do seu seio

emerge, enquanto o justo ritmo avança
na só brancura duma espuma escrita
que ambas instrui e que uma só visita.


Fernando Echevarría

É DOCE ENVELHECER



É doce envelhecer quando o que avança é ir recrudescendo a inteligência. Entra-lhe o mundo no vagar. Decanta o seu volume inteiro de contenda. Transporta-se. E entrega na palavra a inteligível criação. Entrega o desenvolvimento. O pulso. A trama que ajustam sua refundação aberta. E a doçura de se ir vendo alarga o envelhecimento a quase ciência. Uma ciência onde o enigma é alma. E onde o mundo contunde. Insiste. E pesa.


Fernando Echevarría

A CHUVA CONJUGOU-SE COM O VENTO



Chegou o inverno à sua luz de chuva.
Estoirou-a fina. Adelgaçou-lhe o vento
de forma à transparência vir à súbita
ampliação de um tempo
propício ao estudo. E a quem ausculta
o imo do que vai aparecendo.
Ou que se entrega à paciência arguta
da nostalgia. Do inverno
e desse especular ritmo que puxa
o em si de cada coisa para o lugar de o vermos

Fernando Echevarría

Acredito que...

“... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."

Excerto de 'De noite'
- Miguel Sousa Tavares
em “Não te deixarei morrer David Crockett"