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terça-feira, 26 de outubro de 2010

SONO


Há, por tudo, um silêncio absorto;
já não brincam mais as pétalas
que o vento deixou cair.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

SAUDADE


Ó!
o lírio branco se tingiu de roxo
ao som da valsa da melancolia.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964  

GLÓRIA



Veio a chuva e lavou aquela poça de sangue,
mas a idéia hoje vive na alegria de todos.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

ANGÚSTIA


O sol se foi embora e a lagoa esquecida
se voltou para dentro de si mesma.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

A FÁBULA DO POETA


O relógio ficou parado no ar!
Pisam o sono. Quem quer vê-lo? É o vento
que entra descalço, vem para apagar
a impressão digital do sofrimento.


Tão branco assim, ele concentra todo
frio da noite em cada cartilagem;
não! dêem-lhe um banho de manhãs e iodo
para que possa continuar a viagem.


De que ele agora é livre, ó Dor, convence-o!
não sente mais o peso do Infinito,
é todo som e pensamento – voando.


Seu corpo nu, molhado de silêncio,
deixou impresso na parede o grito;
a cabeça há de estar (no céu) cantando.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1960
c

ESTERILIDADE



As pálpebras imóveis
não vêem a brisa dormindo
ao lado das folhas secas.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

2. SONETO DA ESPERA INÚTIL



No outro lado de mim mora a criança,
neste lado onde estou é noite fria:
-lancei mão dos pincéis da fantasia
para tornar real minha esperança,


pintar meu ser com as cores da alegria;
então achei a minha semelhança
no menino que fui, não na lembrança
do mundo que perdi e onde vivia.


Se o sonho andei, cruzei meu labirinto
na modelagem abstrata do poema,
virgens manhãs bebi no extinto lago;


e a dor que não senti agora sinto
na amarga solidão, no amargo tema
em que ontem naveguei e hoje naufrago.



Colombo de Sousa
In: Antologia Poética

TÉDIO


Um pensamento morto
e o vento por que não vem?

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

1.SONETO DA ESPERA INÚTIL



O menino de outrora, renascido
em mim e no que sou, tornou-se o estranho
que se perdeu no fundo do tamanho,
que emudeceu no oráculo esquecido;


tal o destino que eu achei no olvido:
-rios de lua onde a brincar me banho,
onde há um pastor que tange seu rebanho
de nuvens, em meu sonho interrompido.


Sempre distante do que fui, carrego
o inferno e o céu dos íntimos momentos,
tateando pelo mundo igual a um cego.


E assim, se ao meu destino me abandono,
flutuo a noite imemorial dos ventos
-noite embriagada em caminhos de sono.



Colombo de Sousa
In: Antologia Poética

PARÁBOLA


Quando tudo cessou e o céu tornou-se azul
a rosa encheu o céu com o incenso da corola.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

MELANCOLIA


Barcos imóveis sabre um mar gelado,
não há sol nem luar?
E a voz incolor ficou parada no ar.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

O ANÚNCIO DO POEMA


A minha dor além de mim me espera,
emboscada na curva do caminho;
tem encantos de rosa, sendo o espinho
que meu corpo e minh’alma dilacera;


talvez quando chegar a primavera
a dor invente o amor, pinte um carinho,
transformando o refúgio onde me aninho
no castelo encantado da quimera;


e a dor navega o mar onde navego
por terra e gente, madrugada e noite,
sempre comigo; a minha dor carrego


para animar o mundo que componho
e ver liberto do alçapão da noite
(já feito poema) o pássaro do sonho.


Colombo de Sousa
In: Antologia Poética

CREPÚSCULO

-Estrelas não!
Pedaços de almas tristes
Que a noite acende pra enfeitar o céu.

Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

ARGUMENTO INICIAL


A Verdade existe. Como encontrá-la?
No gesto azul das flores? – Entretanto,
a flor é a alma que perdeu o encanto
e dorme. Só o amor há de acordá-la.

Por que a Verdade não se diz no canto
do pássaro? – Ninguém lhe entende a fala;
se ela se desse a quem tenta alcançá-la,
seria um corpo que despiu o manto,
 Estágio
não a Verdade há tanto desejada.
Seu gesto incontrolável, todavia,
começa em nós e está no outro hemisfério,

no fundo da manhã carbonizada.
Tudo em vão. Nenhum “sézamo” abriria
as portas imantadas do mistério.


Colombo de Sousa

FUGA

Era noite e o céu estava em mim.

Quando olhei para dentro de mim mesmo
-só vi o rasto de meu próprio espírito,
só ouvi o eco de meus passos perdidos. . .

Aonde fui que não me lembro?


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

SONETO

SONETO

Era preciso que um de nós partisse,
pois nosso amor perdeu o encanto, a graça;
talvez, se morto está, nunca renasça,
nem nunca mais te diga o que te disse.

Ébrios de amor, esgotamos a taça,
sem crer que tanto amor se consumisse.
E como, enfim, mais nada nos unisse,
desmanchou-se o castelo de fumaça.

Depois o adeus – tão rápido, indeciso –
deu-me a impressão de termos sido expulsos
do encantado jardim do Paraíso. . .

Foste, eu fiquei. E aqui, ainda desejo
aos grilhões desse amor prender meus pulsos,
beijar de novo teu primeiro beijo.


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

IVES GANDRA



IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Ives Gandra da Silva Martins, renomado jurista brasileiro com reconhecimento internacional, é professor emérito das universidades Mackenzie, Paulista e da ECEME – Escola de Comando do Estado Maior do Exército.

Presidente do Conselho da Academia Internacional de Direito e Economia, é membro das Academias de Letras Jurídicas, Brasileira e Paulista, Internacional de Cultura Portuguesa (Lisboa), Brasileira de Direito Tributário, Paulista de Letras, dentre outras.

Ao longo de sua notável trajetória, recebeu vários prêmios: Colar de Mérito Judiciário dos Tribunais de São Paulo e do Rio de Janeiro, Medalha Anchieta da Câmara Municipal de São Paulo, Medalha do Mérito Cultural Judiciário do Instituto Nacional da Magistratura e da Ordem do Mérito Militar do Exército Brasileiro, apenas para mencionar alguns. Já participou e organizou mais de 500 congressos e simpósios, nacionais e internacionais, sobre direito, economia e política.

O professor Ives Gandra é autor de mais de 40 livros individualmente, 150 em co-autoria e 800 estudos sobre assuntos diversos, como direito, filosofia, história, literatura e música, traduzidos em mais de dez línguas em 17 países.

Acadêmico das: Academia Paulista de Letras, Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Academia Internacional de Cultura Portuguesa, Academia Matogossense de Letras, Academia Cristã de Letras, Academia de Letras da Faculdade de Direito da Usp.

Olhar de infância




Penetrei pela enorme profundeza
Deste mar colorido de teus olhos
Triste azul. Melancólica tristeza.
Penedo transformado sem escolhos.

Penetrei. Nadador por ter andado.
Suicida solitário. O mar azul
Logo cobriu-me num estranho fado
Quem em vez do Norte, descobriu o Sul.

Azul dentro do azul. A maresia
Marítimos escombros desvendava
E os sonhos que eu fazia, desfazia,
Desfazendo um abismo à idéia escrava.

Afoguei-me no fundo da distância
De um olhar, que busquei por minha infância.

Ives Gandra

Orfeu




Nenhuma estrela havia, em seu olhar.
Um silêncio noturno mal rondava
O muro esmuguecido do pomar,
Cujo fruto sua alma alimentava.

À noite era, porém, linda e presente,
Coberta a lua por escura fronha,
Era a noite do tempo inexistente,
A noite, que consola o mal, que sonha.

Mesmo assim cobrava-se de morte.
Um olhar negro é duplo e, se empoçado
Em funda sensação, encerra a sorte
De um outro olhar no olhar cio próprio fado.

Nenhuma estrela havia. Havia Orfeu,
Lembrando-se da amada que morreu.


Ives Gandra

Pelo caminho de teus olhos





O recesso intocável de tua alma
Invadi, repentina e mudamente,
Através de momento, cuja palma
Cruzou pelos teus olhos, diferente.

A profundez longínqua foi semente
Do sucesso, que trouxe após a calma,
E a conquista desfeita, docemente,
Conquistou o senhor, que hoje te ensalma

Do assalto não mais resta que o caminho,
Onde, silente, entrei, despercebido,
Cuidando retirar—me, por inteiro.

Perdi-me, todavia, e não sozinho
Retornei, muito estranho e sem sentido,
De teu recesso eterno prisioneiro.


Ives Gandra

Soneto de vida interior




Senhor, põe-me, outra vez, à Tua frente
E faze-me encontrar o Teu caminho.
Perdido fui e sou, se de repente
Somente a mim me entregas e sozinho.

Quantas vezes me sinto diferente
E volto a ser, no tempo, descaminho!
Quantas vezes Te fito e sou descrente
E, no espaço, me faço agreste espinho!

Senhor, mostra-me sempre o Teu amor,
Qual tesouro enterrado num terreno,
Valendo mais que todos, pois que é vida.

E faze-me Teu filho no que for
A vivência daquele tom sereno,
Que me leva à chegada da partida.

Ives Gandra

Teu silêncio




O Teu silêncio busco desvendar,
Nas névoas de uma estrada, que não trilho,
Sendo aquele que tem cansado o olhar
E que luta por ser chamado filho.

O Teu silêncio é forte e muito fraca
A força que projeto na procura,
Alicerce desfeito sem estaca,
Luz apagada em plena noite escura.

O Teu silêncio vive em minha vida,
Cujo curso reduz o seu caminho,
Mas ando sempre e sinto esta ferida
Que a rosa nunca fa7, mas faz o espinho.

O Teu silêncio eu sei, porém, um dia.
Será descortinado e a minha via.


Ives Gandra

CICATRIZES DO TEMPO




Cicatrizes do tempo formam rugas,
Desfigurando seres pela vida.
Por mais que se vislumbrem novas fugas,
Haverá sempre o dia da partida.

As almas, muitas vezes, ficam nuas,
Descortinando assim tais cicatrizes,
Contorcidas nos troncos e nas ruas
Dos abismos sem fim e sem matrizes.

Não se limpam da pele as rudes marcas,
Mas podem se limpar tatuagens d’alma,
Tornando as tristes nódoas, nódoas parcas,
Na busca da verdade, eterna e calma.

Quem luta, na existência, por ser forte,
Liberdade terá na sua morte.

Jaguariúna, 20/11/08.
Ives Gandra

A Primavera eterna




A pátena do tempo é mais intensa,
Cobrindo o temporal e o intemporal,
Com um toque que o sonho não dispensa,
Como o mar que na praia põe o sal.

Não há no nosso amor porém as rugas,
Nem corre em nossas veias o cansaço,
Como em Bach os prelúdios geram fugas,
Sorvemos este bem em todo o espaço.

Desde cedo dedico-te, meu verso,
com a mesma imensidade, todos anos,
Tu és, posso dizer-te, um Universo,
Onde imperas com ares soberanos.


Amor de meu amor, amor eterno,
Que sempre em primavera torna o inverno.


Rio, 08/04/2008.
Ives Gandra

COMPASSO DERRADEIRO



No compasso do tempo gero teias,
Que se emaranham em torno de meu mundo,
Neste relógio feito por areias,
Endereçadas para um chão sem fundo.

Dentre a cimeira parte pouco resta,
Quase tudo passado da medida.
A vida não foi luto, nem foi festa,
Como não foi também toda perdida.

A derradeira areia está bem perto
E meu último passo bem à vista.
O canto continua no deserto,
Sem saber de seu fim quant’inda dista.

Neste tempo renovo um só compasso,
Que formatou, na luta, meu espaço.


Jaguariúna, 01/05/2009.
Ives Gandra

Praia



Peixes, cardumes,
Ondas, queixumes,
Verão.
Belas morenas
Tardes serenas
Paixão.

Mares profundos,
Olhos bem fundos,
Tristeza.
Pernas divinas,
Lindas meninas,
Beleza.

Beijos, lamentos
Soltos aos ventos
Apenas.
Sangue nas veias
Brancas areias
Amenas.


Santos, outubro 1949 (14 anos).
Ives Gandra

terça-feira, 19 de outubro de 2010

INFÂNCIA


INFÂNCIA


Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade

POR AÍ ALÉM


POR AÍ ALÉM


Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.


Carlos Drummond de Andrade
in ‘Poesia Errante ‘

NO BANCO DE JARDIMc


NO BANCO DE JARDIM


No Banco de jardim
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.

No banco do jardim.
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.

No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.


Carlos Drummond de Andrade
In 'Poesia Completa'

QUERO SENTIR


QUERO SENTIR


Quero sentir tua mão amiga,
junto da minha no prazer, na dor.
Assim, mesmo entoada a última cantiga,
um som há de restar do nosso amor.


Carlos Drummond de Andrade
In ‘Poesia Errante

POESIA


Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Carlos Drummond de Andrade

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU


ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.


Carlos Drummond de Andrade

LAGOA


LAGOA


Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito.
Não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.

Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
e calma também.

Na chuva de cores
da tarde que explode,
a lagoa brilha.
A lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa...


Carlos Drummond de Andrade

TOADA DA VIDA


TOADA DA VIDA


E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.

Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.


Carlos Drummond de Andrade

INSTANTE


INSTANTE


Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,

mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.

A manha sempre sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços

E que mais, vida eterna, me planejas?
0 que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.


Carlos Drummond de Andrade

Quem me acode à cabeça e ao coração


Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.


Carlos Drummond de Andrade
(Dezembro de 1985)

ENTRE O SER E AS COISAS


ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N´água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungido,
uma fogueira a arder no dia findo.

Carlos Drummond de Andrade

COISAS FINDAS


COISAS FINDAS


"Amar o perdido
Deixa confundido
Este coração.
Nada pode o olvido
Contra o sem sentido
Apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas
Muito mais que lindas,
Essas ficarão".


Carlos Drummond de Andrade

CONFISSÃO


CONFISSÃO

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde , ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.


Carlos Drummond de Andrade

POEMA QUE ACONTECEU


POEMA QUE ACONTECEU


Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.


Carlos Drummond de Andrade

VERDADE


VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.



Carlos Drummond de Andrade

CERTAS PALAVRAS


CERTAS PALAVRAS

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade

HISTÓRIA NATURAL


HISTÓRIA NATURAL


Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.


Carlos Drummond de Andrade

O DEUS DE CADA HOMEM


O DEUS DE CADA HOMEM

Quando digo “meu Deus”,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.


Carlos Drummond de Andrade

AUSÊNCIA


AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

AMOR E SEU TEMPO


AMOR E SEU TEMPO

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.


Carlos Drummond de Andrade

SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA


SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA


Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.


Carlos Drummond de Andrade

NO MEIO DO CAMINHO


NO MEIO DO CAMINHO


No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande


O mundo é grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.


Carlos Drummond de Andrade
in “Amar se Aprende Amando”

ACORDAR, VIVER


ACORDAR, VIVER


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.


Carlos Drummond de Andrade

Acredito que...

“... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."

Excerto de 'De noite'
- Miguel Sousa Tavares
em “Não te deixarei morrer David Crockett"